A teoria da janela quebrada e a política da tolerância zero
face aos princípios da insignificância e da intervenção
mínima no direito brasileiro
Introdução
Diante do crescimento acelerado da violência e da criminalidade em todo o mundo, que acabou por atingir níveis intoleráveis, faz-se necessário, por parte dos países, a adoção imediata de medidas e políticas hábeis a combater e conter a ocorrência de crimes.
Nesse contexto, os Estados Unidos, visando combater os altos índices de criminalidade, implantou a política de Tolerância Zero, baseada na Teoria da Janela Quebrada (“Broken Windows Theory”), que consiste em reprimir todo e qualquer ato criminoso, a fim de evitar a ocorrência de delitos de maior potencial ofensivo.
Os fundamentos da referida política ainda encontra-se em prática naquele país e, ao que tudo indica, parece estar alcançando bons resultados, haja vista a substancial redução da criminalidade naquele país, mormente na cidade de Nova Iorque.
Assim, o presente trabalho objetiva realizar um breve estudo sobre a mencionada política de tolerância zero, implantada nos Estados Unidos, bem como sobre a teoria da janela quebrada, também originada daquele país, e realizar uma comparação com o direito brasileiro no tocante ao combate à criminalidade e punição de pequenos delitos, notadamente pela aplicação dos princípios da intervenção mínima e da insignificância.
Teoria da Janela Quebrada (Broken Windows Theory)
A teoria da janela quebrada (broken windows theory) surgiu a partir de um estudo realizado pelo cientista político James Wilson e o psicólogo criminologista George Kelling, ambos pesquisadores da Universidade de Haward, publicado em 1982 na revista The Atlantic Monthly. O estudo teve por finalidade demonstrar a relação de causalidade entre a desordem e a criminalidade.
A teoria exposta pelos pesquisadores ficou assim conhecida (“Janela Quebrada”) em virtude de terem os autores utilizado de janelas quebradas para explicarem como a desordem pode levar a prática de crimes mais graves. Segundo eles, caso uma janela de um prédio fosse quebrada e não fosse imediatamente consertada, as pessoas que a avistasse pensaria que naquele local ninguém se preocuparia com aquilo, o que levaria os vândalos a depredarem mais janelas, e, eventualmente, poderiam invadir o local e lá estabelecerem moradia ou depredá-lo ainda mais. E o que é pior, poderia chegar ao ponto de vândalos, desocupados e pessoas com tendências criminosas perceberem que naquela rua ninguém se preocupava com os atos de criminalidade, levando-os a se estabelecerem naquele local e afugentarem as pessoas de bem. Seria, assim, um processo gradativo, em que o descaso a pequenos atos de vandalismo, levaria a conseqüências mais graves.
A teoria da janela quebrada teve como suporte uma experiência feita pelo psicólogo americano Philip Zimbardo, que consistiu em deixar um carro em um bairro de classe alta e outro em um bairro de classe baixa da Califórnia. O carro deixado no bairro de classe baixa foi imediatamente danificado. Já o carro deixado no bairro de classe alta, durante a primeira semana, permaneceu intacto, não tendo sido danificado nem deteriorado por ninguém. Contudo, após quebrarem uma janela do carro, este passou a ser danificado e vandalizado pela população local.
Dessa experiência, chegou-se a conclusão de que não só a pobreza é causa do aumento da criminalidade, mas também o descaso aos atos de desordem e vandalismo. Assim, verificou-se que as normas sociais de convívio em sociedade são totalmente ignoradas quando as pessoas percebem que ninguém se importa com os atos de vandalismo. Bastou quebrar uma janela do carro e as pessoas perceberem que ninguém se importou que todos imediatamente começaram a danificar todo o carro.
Em síntese, a teoria da janela quebrada expressava que caso a população e as autoridades públicas não se preocupassem com os pequenos atos de marginalidade, como o ato de quebrar a janela de um prédio, induziria as pessoas a acreditarem que naquele local ninguém se importa com a desordem pública, o que levaria a prática de delitos mais graves naquele local. Os delitos de maior ofensividade surgem em conseqüência da não reprimenda aos atos de desordem e aos pequenos delitos.
Dessa forma, a teoria da janela quebrada esclarece como deve ser combatido os altos índices de criminalidade em um local: passando-se a repreender e conter os pequenos atos de criminalidade e vandalismo, além do policiamento comunitário, que possui grande papel na prevenção de crimes. Referida teoria alcançou bons resultados nos Estados Unidos, reduzindo-se drasticamente a criminalidade, principalmente na cidade de Nova Iorque, conforme será abordado.
Operação Tolerância Zero – Nova Iorque
Ao longo das décadas de 70 e 80, diante da ignorância das pessoas e das autoridades públicas com os pequenos gestos de vandalismo e desordem, a cidade de Nova Iorque atingiu níveis elevados de criminalidade.
Isso porque, as pichações e os gestos de mendicância não eram reprimidos, fazendo com que, destes pequenos gestos de desordem, surgissem os delitos mais graves. O problema era ainda maior nos metrôs da cidade, local fechado, escuro e deserto durante a noite, em que praticamente não haviam leis e reprimendas para os desordeiros, que praticavam os mais diversos atos de vandalismo.
A solução para os problemas da criminalidade em Nova Iorque passou a ser tema de campanha política naquela cidade, já que a população clamava por uma cidade melhor.
Em 1990, o policial Willian Bratton, que havia realizado brilhante trabalho na polícia de Boston, foi contratado pela Polícia de Trânsito de Nova Iorque, com a incumbência de ajudar resolver o problema da criminalidade naquela cidade.
Bratton contava com o apoio de Kelling (co-autor da teoria da janela quebrada) para implantação de medidas de combate a criminalidade. De imediato, foram identificados os três principais problemas existentes nos metrôs da cidade: os passageiros pulavam as catracas para furtarem-se do pagamento, a desordem e a criminalidade.
Passou-se, então a aplicar em Nova Iorque os fundamentos da teoria da janela quebrada, reprimindo-se os pequenos delitos a fim de evitar a ocorrência de delitos mais graves.
Consigne-se que, de início, a implantação das medidas de Bratton e Kelling não foi fácil, eis que nem a população e nem as autoridades públicas tinham o costume de se preocuparem em punir e repreender os pequenos atos de desordem e criminalidade.
Nesse contexto de aplicação das medidas de Bratton, começaram, assim, a serem presos aqueles que pulavam as catracas do metrô para evitarem o pagamento. Policiais à paisana esperavam o momento em que o desordeiro pulasse a catraca e efetuava sua prisão, o que fez com os níveis de pessoas que pulavam as catracas reduzissem consideravelmente. E o que é melhor, muitas das pessoas presas por esse “simples” ato de desordem eram foragidas da polícia ou estavam portando armas. Dessa forma, atacando esse problema da falta de pagamento no metrô, estava-se evitando a ocorrência de crimes mais graves. Esses atos de repressão aos delitos menores preveniam a ocorrência de crimes de maior ofensividade.
Já no ano de 1994, o ex-promotor Rudolph Giuliani, então eleito para prefeito da cidade de Nova Iorque, decidiu expandir a política de combate aos pequenos delitos no metrô para as ruas daquela cidade, operação essa que ficou conhecida como Tolerância Zero e seria chefiada por Bratton.
Bratton, utilizando-se do mesmo princípio fundamental da teoria da janela quebrada – reprimir os pequenos atos de desordem e vandalismo para prevenir a ocorrência de delitos mais graves – passou a reestruturar a cidade no sentido de não mais permitir a desordem e os pequenos delitos.
A polícia de Nova Iorque, de início, começou a atuar contra aqueles que limpavam os pára-brisas dos carros e coagiam os motoristas a lhe darem dinheiro. Esse ato que, a um primeiro momento, parece inofensivo, atormentava os motoristas daquela cidade, que se sentiam ameaçados. Frise-se que as reprimendas não consistiam em penas privativas de liberdade, mas sim em prestação de serviços comunitários.
E não parou por ai. Passou-se a reprimir de uma forma geral todo e qualquer ato de desordem e vandalismo, desde o ato de urinar em praça pública até o ato de pilotar motocicleta sem capacete. Implantou-se, ainda, o policiamento comunitário, de forma a aproximar a população da polícia.
O resultado, como esperado, não podia ser outro: os índices de criminalidade na cidade de Nova Iorque reduziram-se consideravelmente nos últimos anos e, continuam, ainda hoje, em queda.
A cidade de Nova Iorque, que nos últimos trinta anos havia atingido níveis intoleráveis de criminalidade, parece ter se tornado em uma cidade tranqüila e sem violência.
Importante mencionar que não se pode atribuir a redução da violência em Nova Iorque unicamente a aplicação dos fundamentos da teoria da perda de uma chance. Fatores outros devem ser considerados, como a recuperação da economia mundial que proporcionou o aumento de vagas de emprego, afastando a população do crime.
Criminalidade no Brasil e Aplicação dos Princípios da Intervenção Mínima e da Insignificância
O problema do aumento da criminalidade também é latente no Brasil. Os índices de violência vêm aumentando cada vez mais, principalmente nos grandes centros. As pessoas já não agüentam mais viverem trancadas em suas casas enquanto os responsáveis pelas práticas de crimes ficam soltos pelas ruas. Chegou-se, assim, a níveis intoleráveis de criminalidade.
Entretanto, parece assustador o descaso das autoridades públicas com essa situação. Pequenos atos de violência e desordem no país são simplesmente ignorados e não reprimidos sob o preceito de que o direito penal não deve se preocupar com pequenos delitos.
Vigora nesse país os princípios da intervenção mínima e da insignificância, os quais são responsáveis por orientar os aplicadores do direito que lidam com o direito penal.
O princípio da intervenção mínima ou da subsidiariedade, tido como fundamental para a doutrina do direito penal mínimo, apregoa que o direito penal não deve intervir em demasia na vida do indivíduo. É dizer, a criação da norma penal incriminadora deve ser tida como ultima ratio, somente quando não houver outra forma de proteção do bem jurídico. Segundo Mirabete (2007, p. 108), “não se devem incriminar os fatos em que a conduta não implique risco concreto ou lesão a nenhum dos bens jurídicos reconhecidos pela ordem normativa constitucional”. Assim, segundo esse princípio, é inadequada a criação de normas penais quando outras formas de proteção ao bem jurídico almejado se mostrarem viáveis.
Já o princípio da insignificância ou da bagatela, proposto por Claus Roxin[1], permite excluir do direito penal certos delitos de menor importância.
Referido princípio não se encontra tipificado no ordenamento jurídico brasileiro, porém tem sido freqüentemente utilizado na aplicação da lei penal. É comum, no caso de delitos de menor lesividade, os membros do Ministério Público e os advogados requererem a extinção do processo com base na aplicação do princípio da insignificância, que exclui a tipicidade da conduta. O STF, em julgamento de habeas corpus, já se manifestou sobre os requisitos que permitem a aplicação desse princípio, sendo eles: a) mínima ofensividade da conduta; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e d) inexpressividade da lesão jurídica provocada.[2]
Frise-se que deve-se ter cautela na aplicação dos princípios supracitados, a fim de que não permaneçam impunes os atos de desordem e criminalidade, favorecendo a ocorrência de delitos de maior potencial ofensivo.
Todavia, no Brasil os aplicadores do direito têm feito uso indiscriminado desse princípio, sob o argumento de que o Poder Judiciário já se encontra com excesso de processos, não devendo se preocupar com lesões insignificantes. Parece que não percebem que os delitos maiores surgem em um cenário de descaso aos pequenos delitos, de acordo com os fundamentos da teoria da janela quebrada.
Cumpre mencionar que não se defende a aplicação dessa teoria no Brasil, nos moldes em que proposta nos Estados Unidos, seja por motivos culturais, seja por motivos financeiros. Argumenta-se apenas que não se deve aplicar os princípios aqui mencionados de forma indiscriminada, de forma a criar um cenário “perfeito” para o desenvolvimento de crimes mais graves.
Os atos de desordem e a prática de delitos menores não devem ser ignorados apenas porque não causaram grande lesão ao bem jurídico. Deve-se adotar políticas de prevenção e repressão a esse delitos menores. É claro que nem sempre é necessária a aplicação de penas privativas de liberdade para repreender esses pequenos infratores, bastando, na maioria dos casos, a aplicação de penas de prestações de serviços a comunidade. O importante é que referidos atos não permaneçam impunes.
Nesse sentido, corroborando o entendimento de que o princípio da insignificância deve ser aplicado com cautela de forma a não propiciar a ocorrência de delitos maiores, com base na teoria da janela quebrada, tem-se o seguinte julgado:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. REJEIÇÃO DE DENÚNCIA. ACOLHIMENTO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. DISSENSO JURISPRUDENCIAL QUE NÃO AUTORIZA O ACOLHIMENTO DA TESE ADOTADA. CONTRAPOSIÇÃO DO POSICIONAMENTO PELA ADOÇÃO DA TEORIA DA JANELA QUEBRADA. PRETENSÃO MINISTERIAL ACOLHIDA E DETERMINAÇÃO PARA SEGUIMENTO DA AÇÃO PENAL EM SEUS ULTERIORES TERMOS. RECURSO PROVIDO.[3]
No presente acórdão, afastou-se a aplicação do princípio da insignificância, a fim de que condutas de menor lesividade não permaneçam impunes e favoreçam a ocorrência de delitos mais graves. Defendeu-se, assim, o posicionamento exposto pela teoria da janela quebrada. Confira-se parte do acórdão:
Daí segue a inelutável conclusão: não é só pobreza fator conducente à criminalidade, ou seja, à prática de infrações penais, mas também impunidade - e sua crença - quando se está diante de crimes de pequena gravidade. A este teor, com a devida vênia, há que se repudiar a recorrente aplicação do princípio da insignificância para inúmeros fatos típicos porque, desta forma, estimula-se a reiteração criminosa.
Portanto, ainda que o delito não tenha gravidade exacerbada, há que se punir, sob pena de estimular crimes mais graves. Em suma, delitos mais graves e condutas criminosas mais gravosas surgem em sociedades em que crimes pequenos ou menores não são punidos. De feito, nada obstante se deva reconhecer existência de flagrante divergência que alimenta o entendimento aqui expendido, é caso de prosseguimento da ação penal, mormente porque a coisa subtraída é uma utilidade para seu proprietário, mesmo quando de menor expressão econômica.
Considerações Finais
Sem dúvidas, a aplicação da teoria da janela quebrada nos Estados Unidos, que serviu de inspiração para a política da tolerância zero, surtiu resultados positivos naquele país. Os níveis de criminalidade reduziram-se consideravelmente, tendo aquele país se tornado exemplo para os demais no tocante ao combate a criminalidade. Restou devidamente demonstrado que o descaso aos atos de desordem e aos crimes menos graves serve de fonte para o surgimento de crimes de maior ofensividade.
Dessa forma, a fim de combater o aumento da criminalidade no Brasil, devem as autoridades públicas realizar políticas de prevenção aos delitos menores e repreenderem os já praticados, aplicando-se com cautela os princípios da intervenção mínima e da insignificância, para que delitos menores não permaneçam impunes.
REFERÊNCIAS
GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García – Pablos de. Criminologia. 7.ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 12. ed. Rio de janeiro: Impetus, 2010.
MIRABETE, Julio Frabbrini; FABBRINI, Renato. Manual de Direito Penal. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2007. V.1.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
RUBIN, Daniel Sperb. Janelas quebradas, tolerância zero e criminalidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/3730>. Acesso em: 15 de maio 2011.
[1] Política criminal y sistema del derecho penal. Barcelona, 1972.
[2] STF – HC 84.412, Rel. Min. Celso de Mello, DJ. 19.11.2004
[3] TJSP – RSE 0018910-29.2009.8.26.0077, Rel. Des. Euvaldo Chaib, DJ. 22.02.2011.
JOSÉ AUGUSTO DE CARVALHO NETO: Acadêmico do curso de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARVALHO NETO, José Augusto de. A teoria da janela quebrada e a política da tolerância zero face aos princípios da insignificância e da intervenção mínima no direito brasileiro. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 maio 2011. Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.32244&seo=1>. Acesso em: 06 dez. 2015.
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