Sou terminantemente contra o aborto.
Vida:
O primeiro instante
por Texto Eliza Muto e Leandro Narloch
Ao lado de “paz” e “amor”, “vida” é uma daquelas
poucas palavras capazes de provocar unanimidade. Quem pode ser contra? “Amor” e
“paz”, no entanto, são conceitos cuja definição não desperta polêmica. Com
“vida” é diferente. Ninguém é capaz sequer de explicar o que é vida. Só no
Aurélio há 18 tentativas.
Por mais de 2 mil anos, essa indefinição foi motivo
de inquietação só para poucos filósofos. Em geral, nos contentamos em falar que
vida é vida e pronto. Hoje, porém, a ciência mexe fundo neste conceito.
Expressões como “proveta” e “manipulação genética” estão cada vez mais
presentes no cotidiano. E a pergunta sobre o que é vida, e quando ela começa,
virou uma polêmica que vai guiar boa parte da sociedade em que vamos viver. A
resposta sobre a origem de um indivíduo será decisiva para determinar se aborto é crime ou não. E se é ético
manipular embriões humanos em busca da cura para doenças como o mal de
Alzheimer e deficiências físicas.
“Ter embriões estocados em laboratório é um evento
tão novo e diferente para a humanidade que ainda não tivemos tempo de
amadurecer essa ideia”, diz José Roberto Goldim, professor de bioética da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “Biologicamente, é inegável que a
formação de um novo ser, com um novo código genético, começa no momento da
união do óvulo com o espermatozóide.
Mas há pelo menos 19 formas médicas para decidir quando reconhecer esse embrião como uma pessoa.”
Vida é quando acontece a fecundação? Isso significa dizer que
cerca de metade dos seres humanos morre nos primeiros dias, já que é muito
comum o embrião não conseguir se fixar na
parede do útero, sendo expelido naturalmente pelo corpo. Vida é o oposto de
morte – e então ela se inicia quando começam as atividades cerebrais, por volta
do 2º mês de gestação? Vida é um coração batendo, um feto com formas humanas, um bebê
dando os primeiros gritos na sala de parto? Ou ela começa apenas quando a
criança se reconhece como indivíduo, lá pelos 2 anos de idade? Para a Igreja,
vida é o encontro de um óvulo e um espermatozóide e, portanto, não há qualquer
diferença entre um zigoto de 3 dias, um feto de 9 meses e um homem de 90
anos. Mas então por que não existem velórios com coroas de flores, orações e
pessoas de luto para embriões que morrem nos primeiros dias de gravidez? Essa é uma discussão cheia
de contradições e respostas diferentes. Um debate em que a medicina fica mais
perto de ser uma ciência humana do que biológica e em
que freqüentemente se encontram cientistas usando argumentos religiosos, e
religiosos se valendo de argumentos científicos. Por isso, o melhor a fazer é
começar pela história de como a idéia de vida apareceu entre nós.
A história da vida
Saber onde começa a vida é uma pergunta antiga. Tão
velha quanto a arte de perguntar – a questão despertou o interesse, por
exemplo, do grego Platão, um dos pais da filosofia. Em seu livro República,
Platão defendeu a interrupção da gestação em todas as mulheres que
engravidassem após os 40 anos. Por trás da afirmação estava a idéia de que
casais deveriam gerar filhos para o Estado durante um determinado período. Mas
quando a mulher chegasse a idade avançada, essa função cessava e a indicação
era clara: o aborto. Para Platão, não havia
problema ético algum nesse ato. Ele acreditava que a alma entrava no corpo
apenas no momento do nascimento.
As idéias do filósofo grego repercutiram durante
séculos. Estavam por trás de alguns conceitos que nortearam a ciência na Roma antiga, onde a
interrupção da gravidez era considerada legal e
moralmente aceitável. Sêneca, um dos filósofos mais importantes da época,
contou que era comum mulheres induzirem o aborto com o objetivo de preservar a
beleza do corpo. Além disso, quando um habitante de Roma se opunha ao aborto era para obedecer à vontade do
pai, que não queria ser privado de um filho a quem ele tinha direito.
A tolerância ao aborto não queria dizer que as
sociedades clássicas estavam livres de polêmicas semelhantes às que enfrentamos
hoje. Contemporâneo e pupilo de Platão, Aristóteles afirmava que o feto tinha, sim, vida. E
estabelecia até a data do início: o primeiro movimento no útero materno. No feto do sexo masculino, essa
manifestação aconteceria no 40º dia de gestação. No feminino, apenas no 90º dia
– Aristóteles acreditava que as mulheres eram física e intelectualmente
inferiores aos homens e, por isso, se desenvolviam mais lentamente. Como
naquela época não era possível determinar o sexo do feto, o pensamento aristotélico
defendia que o aborto deveria ser permitido apenas
até o 40º dia da gestação.
A teoria do grego Aristóteles sobreviveu
cristianismo adentro. Foi encampada por teólogos fundamentais do catolicismo,
como São Tomás de Aquino e Santo Agostinho, e acabou alçada a tese oficial da
Igreja para o surgimento da vida. E assim foi por um bom tempo – até o ano de
1588, quando o papa Sixto 5º condenou a interrupção da gravidez, sob pena de excomunhão.
Nascia aí a condenação do Vaticano ao aborto, você deve estar pensando.
Errado. O sucessor de Sixto, Gregório 9º, voltou atrás na lei e determinou que
o embrão não formado não poderia ser
considerado ser humano e, portanto, abortar era diferente de cometer um
homicídio. Essa visão perdurou até 1869, no papado de Pio 9º, quando a Igreja
novamente mudou de posição. Foi a solução encontrada para responder à pergunta
que até hoje perturba: quando começa a vida? Como cientistas e teólogos não
conseguiam concordar sobre o momento exato, Pio 9º decidiu que o correto seria
não correr riscos e proteger o ser humano a partir da hipótese mais precoce, ou
seja, a da concepção na união do óvulo com o espermatozóide.
A opinião atual do Vaticano sobre o aborto, no entanto, só seria
consolidada com a decisão dos teólogos de que o primeiro instante de vida
ocorre no momento da concepção, e que, portanto, o zigoto deveria ser
considerado um ser humano independente de seus pais. “A vida, desde o momento
de sua concepção no útero materno, possui essencialmente o mesmo valor e merece
respeito como em qualquer estágio da existência. É inadmissível a sua
interrupção”, afirma dom Rafael Llano Cifuentes, presidente da Comissão
Episcopal Pastoral para a Vida e a Família da Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil (CNBB).
O catolicismo é das únicas grandes religiões do
planeta a afirmar que a vida começa no momento da fecundação e a equiparar qualquer aborto ao homicídio. O judaísmo e o
budismo, por exemplo, admitem a interrupção da gravidez em casos como o de risco de
vida para a mãe (veja quadro na pág 61). Isso mostra que a idéia de vida e a
importância que damos a ela varia de acordo com culturas e épocas. Até séculos
atrás, eram apenas as crenças religiosas e hábitos culturais que davam as
respostas a esse debate cheio de possibilidades. Hoje, a ciência tem muito mais a dizer sobre o
início da vida.
A CIÊNCIA EXPLICA:
O astrônomo Galileu Galilei (1554-1642) passou a
vida fugindo da Igreja por causa de seus estudos de astronomia. Ironicamente,
sem uma de suas invenções – o telescópio, fundamental para a criação do
microscópio – a Igreja não teria como fundamentar a tese de que a vida começa
já na união do óvulo com o espermatozóide.
Foi somente no século 17, após a invenção do aparelho, que os cientistas
começaram a entender melhor o segredo da vida. Até então, ninguém sabia que o
sêmen carregava espermatozóides.
Mais tarde, por volta de 1870, os
pesquisadores comprovaram que aqueles espermatozóides corriam até o óvulo, o
fecundavam e, 9 meses depois, você sabe. Foi uma descoberta revolucionária. Fez
os cientistas e religiosos da época deduzir que a vida começa com a criação de
um indivíduo geneticamente único, ou seja, no momento da fertilização. É quando
os genes originários de duas fontes se combinam para formar um indivíduo único
com um conjunto diferente de genes.
Que bom se fosse tão simples assim. Hoje sabemos
que não existe um momento único em que acontece a fecundação. O encontro do óvulo com o espermatozóide não é instantâneo. Em um
primeiro momento, o espermatozóide penetra no óvulo, deixando sua
cauda para fora. Horas depois, o espermatozóide já está dentro do óvulo, mas
os dois ainda são coisas distintas. “Atualmente, os pesquisadores preferem
enxergar a fertilização como um processo que ocorre em um período de 12 a 24
horas”, afirma o biólogo americano Scott Gilbert, no livro Biologia do
Desenvolvimento. Além disso, são necessárias outras 24 horas para que os
cromossomos contidos no espermatozóide se encontrem com os
cromossomos do óvulo.
Quando a fecundação termina, temos um novo ser, certo?
Também não é bem assim. A teoria da fecundação como início de vida sofre um
abalo quando se leva em consideração que o embrião pode dar origem a dois ou mais
embriões até 14 ou 15 dias após a fertilização. Como uma pessoa pode surgir na fecundação se depois ela se transforma em
2 ou 3 indivíduos? E tem mais complicação. É bem provável que o embrião nunca passe de um amontoado de
células. Depois de fecundado numa das trompas, ele precisa percorrer um longo
caminho até se fixar na parede do útero. Estima-se que mais de 50% dos óvulos
fertilizados não tenham sucesso nessa missão e sejam abortados espontaneamente,
expelidos com a menstruação.
Além dessa visão conhecida como “genética”, há pelo menos outras 4
grandes correntes científicas que apontam uma linha divisória para o início da
vida. Uma delas estabelece que a vida humana se origina na gastrulação –
estágio que ocorre no início da 3ª semana de gravidez, depois que o embrião, formado por 3 camadas
distintas de células, chega ao útero da mãe. Nesse ponto, o embrião, que é menor que uma cabeça
de alfinete, é um indivíduo único que não pode mais dar origem a duas ou mais
pessoas. Ou seja, a partir desse momento, ele seria um ser humano.
Com base nessa visão, muitos médicos e ativistas
defendem o uso da pílula do dia seguinte, medicação que dificulta o encontro do espermatozóide com o óvulo ou, caso a fecundação tenha ocorrido, provoca
descamações no útero que impedem a fixação do zigoto. Para os que brigam pelo o
direito do embrião à vida, a pílula do dia
seguinte equivale a uma arma carregada.
Para complicar ainda mais, há uma terceira corrente
científica defendendo que para saber o que é vida, basta entender o que é
morte. E países como o Brasil e os EUA definem a morte como a ausência de ondas
cerebrais. A vida começaria, portanto, com o aparecimento dos primeiros sinais
de atividade cerebral. E quando eles surgem? Bem, isso é outra polêmica.
Existem duas hipóteses para a resposta. A primeira diz que já na 8ª semana de gravidez o embrião – do tamanho de uma jabuticaba
– possui versões primitivas de todos os sistemas de órgãos básicos do corpo
humano, incluindo o sistema nervoso. Na 5ª semana, os primeiros neurônios
começam a aparecer; na 6ª semana, as primeiras sinapses podem ser reconhecidas;
e com 7,5 semanas o embrião apresenta os primeiros
reflexos em resposta a estímulos. Assim, na 8ª semana, o feto – que já tem as feições
faciais mais ou menos definidas, com mãos, pés e dedinhos – tem um circuito
básico de 3 neurônios, a base de um sistema nervoso necessário para o
pensamento racional.
A segunda hipótese aponta para a 20ª semana, quando
a mulher consegue sentir os primeiros movimentos do feto, capaz de se sentar de pernas
cruzadas, chutar, dar cotoveladas e até fazer caretas. É nessa fase que o
tálamo, a central de distribuição de sinais sensoriais dentro do cérebro, está
pronto. Se a menor dessas previsões, a de 8 semanas, for a correta, mais da
metade dos abortos feitos nos EUA não interrompem vidas. Segundo o instituto
americano Allan Guttmacher, ong especializada em estudos sobre o aborto, 59% dos abortos legais
acontecem antes da 9ª semana.
Apesar da discordância em relação ao momento exato
do início da vida humana, os defensores da visão neurológica querem dizer a
mesma coisa: somente quando as primeiras conexões neurais são estabelecidas no
córtex cerebral do feto ele se torna um ser humano.
Depois, a formação dessas vias neurais resultará na aquisição da “humanidade”.
E essa opinião também é partilhada por alguns teólogos cristãos, como Joseph
Fletcher, um dos pioneiros no campo da bioética nos EUA. “Fletcher acreditava
que, para se falar em ser humano, é preciso se falar em critérios de
humanidade, como autoconsciência, comunicação, expressão da subjetividade e
racionalidade”, diz o filósofo e teólogo João Batistiolle, da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
Para o filósofo Peter Singer, da Universidade de
Princeton, nos EUA, levado às últimas conseqüências o critério da
autoconsciência pode ser usado para considerar o infanticídio moralmente
aceitável em algumas situações. Segundo ele, é lícito exterminar a vida de um embrião, feto sem cérebro ou até de um
recém-nascido extremamente debilitado se levarmos em conta que o bebê não têm
consciência de si, sentido de futuro ou capacidade de se relacionar com os
demais. “Se o feto não tem o mesmo direito à vida
que a pessoa, é possível que o bebê recém-nascido também não tenha”, afirma o
filósofo australiano, que atraiu a ira de grupos pró-vida que o acusam de ser
nazista, embora 3 de seus avós tenham morrido no holocausto. “Pior seria
prolongar a vida de um recém-nascido com deficiências graves e condenado a uma
vida repleta de sofrimento.”
É o caso de bebês com anencefalia, que não têm o
cérebro completamente formado. Dos fetos anencéfalos que nascem vivos, 98%
morrem na 1ª semana. Os outros, nas semanas ou meses seguintes. Nesse caso, é
melhor prolongar a existência do bebê ou abortar para evitar o sofrimento da
criança? “Provavelmente, a vida de um chimpanzé normal vale mais a pena que a
de uma pessoa nessa condição. Assim, poderia dizer que há circunstâncias em que
seria mais grave tirar a vida de um não-humano que de um humano”, alega Singer.
A tese é recebida com desprezo no campo adversário. “Há testemunhos entre pais
de pacientes desenganados pela medicina de que é possível viver uma
positividade mesmo dentro da situação de sofrimento”, afirma Dalton Luiz de
Paula Ramos, professor da USP e coordenador do Projeto Ciências da Vida, da
PUC-SP. Em julho de 2004, o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu liminar
liberando o aborto de fetos anencéfalos no país.
A decisão final da Justiça, que pode legalizar definitivamente o aborto de anencéfalos no Brasil, deve
sair a qualquer momento.
A cura dentro de nós
Perto da deficiência física, porém, o nascimento de
fetos anencéfalos é um problema pequeno. Segundo o IBGE, existem 937 mil
brasileiros paraplégicos, tetraplégicos ou com um lado do corpo paralisado. Sem
conseguir se mexer, muitos acabam morrendo por causa das escaras, feridas na
pele criadas pela falta de circulação do sangue. Foram elas que mataram, em
outubro de ano passado, o ator americano Christopher Reeve, célebre no papel do
Super-Homem e ativista em prol dos estudos com células-tronco. Desde a década de 1980, esse
tipo de células vem dando esperança a quem antes pensava que nunca voltaria a
andar. Mas o futuro dessas pesquisas também está ligado à polêmica sobre onde
começa a vida humana.
Do mesmo modo que as primeiras células que formam o embrião humano, as células-tronco são como curingas: ainda não
foram diferenciadas para formar os tecidos que compõem o organismo. Podem se
transformar em células ósseas, renais, neurônios, dependendo da necessidade e
do poder de regeneração de cada órgão. Mesmo depois do nascimento, o corpo conserva
essas células, sobretudo no cordão umbilical e na medula óssea. Injetando ou
incentivando a migração de células-tronco adultas da medula para o
coração, por exemplo, os cientistas estão conseguindo fazer o principal órgão
humano se regenerar. Em pouco mais de um mês, pacientes com insuficiência
cardíaca provocada por infartos ganham vida nova. A ideia é que a técnica das células-tronco, eleita pela revista Science
como a mais importante pesquisa biológica do milênio, possa curar problemas
renais, hepáticos, lesões da medula espinhal, mal de Alzheimer e até
possibilitem a criação de órgãos em laboratório.
Até aí, nenhum conflito ético. Em 1998, porém,
descobriu-se que as célular-tronco mais potentes, capazes de se
transformar em qualquer um dos 216 tecidos humanos e se replicar com grande
velocidade, são as originais, o resultado da fecundação do óvulo com o espermatozóide.
Os cientistas utilizam embriões com 3 a 4 dias de desenvolvimento (e entre 16 e
32 células), que sobram do processo de fertilização in vitro em clínicas
especializadas. No laboratório, as células-tronco são retiradas num processo que
provoca a destruição do embrião. Mas, se a vida começa na fecundação, os cientistas estariam
lidando, em seus tubos de ensaio, com seres humanos vivos. O mesmo problema
ético acontece com a inseminação artificial, que cria diversos embriões em
laboratório e depois os descarta ou os congela. Não só os religiosos consideram
essas técnicas um absurdo.
“Assim como não dá para dizer que matar um jovem é
melhor que matar um adulto, não há diferença de dignidade entre um embrião e um feto de 6 meses”, afirma o
professor Dalton, da USP. Um embrião, apesar de ser um amontoado
de meia dúzia de células, muito menos complexo que uma mosca, carrega toda a
informação genética necessária para a formação de
um indivíduo. Nos seus 23 cromossomos paternos e 23 maternos, estão os 30 mil
genes que determinarão os traços, a cor dos olhos, da pele, do cabelo, além de
doenças como a síndrome de Down. Pensando nisso, países como a França chegaram
a proibir pesquisas com células-tronco embrionárias. Hoje, os
franceses permitem esses estudos, assim como a maioria dos outros países
europeus e do Brasil. Desde março deste ano, a Lei de Biossegurança permite o
uso de embriões descartados por clínicas de fertilização e congelados há pelo
menos 3 anos – o prazo foi definido para evitar a produção de embriões
exclusivamente para estudos. Há no país 20 mil embriões em condições de
pesquisa dentro da lei. Mas uma ação de inconstitucionalidade movida pelo
ex-procurador-geral da República Claudio Fonteles coloca o assunto em xeque.
Quer dizer então que o governo brasileiro proíbe o aborto mas permite a manipulação de
embriões humanos vivos? Depende do que você considera humanos vivos. “A vida
começou há milhões de anos e cada um de nós é fruto contínuo daquele processo”,
afirma Fermin Roland Schramm, presidente da Sociedade de Bioética do Estado do
Rio de Janeiro (Sbrio). “A pergunta pertinente não é quando começa a vida, mas quando
começa uma vida relevante do ponto de vista ético. Um embrião num tubo de ensaio é apenas
uma possibilidade de vida, assim como eu sou um morto em potencial, mas ainda
não estou morto.” Como logo após a fertilização o zigoto tem grande
probabilidade de não se tornar uma gravidez e ainda pode se dividir,
alguns cientistas preferem chamar o embrião que ainda não se fixou no
útero de “pré-embrião”. “A ética considera relações entre seres, entre
um ‘eu’ e um ‘tu’. É difícil considerar um embrião um ‘tu’”, diz Fermin. “Já
quando ele começa a estabelecer uma relação com a mãe, a interrupção do
processo passa a ser mais problemática do ponto de vista moral.”
Outro ponto a favor dos que estão mexendo com os
embriões é que novidades da ciência sempre assustaram. Foi assim
com a fertilização artificial, com o transplante de coração e até com a
transfusão de sangue. Hoje, esses avanços são essenciais para a saúde pública.
“A única certeza que temos em relação às células-tronco adultas, encontradas no cordão
umbilical, é que elas podem se diferenciar em células sanguíneas”, afirma a
geneticista Mayana Zatz, do Instituto de Biociências da USP, considerada a
principal voz da classe científica na aprovação do dispositivo da Lei de
Biossegurança que trata da pesquisa com células-tronco embrionárias. “Nunca vamos
descobrir o potencial das células-tronco embrionárias
se não pudermos estudá-las.”
Polêmicas à parte, às células-tronco embrionárias mostram que a
solução para os males que perturbam o ser humano pode estar em nós mesmos. Ao
contrário da discussão sobre o aborto, a polêmica das células-tronco surgiu com o esforço de fazer
aleijados levantar e andar, doentes renais ganhar órgãos novos, cardíacos ter o
coração reforçado. É um jeito de usar a essência da vida para encarar o maior
inimigo da ciência: a morte, que também está no
grupo das palavras que provocam unanimidade. É impossível gostar dela. O
problema é que também não sabemos exatamente o que é morte. É quando o coração
pára? Quando o cérebro deixa de funcionar? Cenas para a próxima edição da
Super.
FECUNDAÇÃO
Espermatozóides tentam penetrar no óvulo. Quando um
deles vence a disputa, ainda são necessárias 24 horas até que as duas
estruturas se fundam num único zigoto.
40 HORAS
Depois da fecundação, o número de células do
zigoto dobra a cada 20 horas.
14 DIAS
O embrião chega à parede do útero. A menstruação
pára e a mãe começa a suspeitar que está grávida.
4ª SEMANA
Uma versão rudimentar do que um dia será o coração
começa a bater. O embrião mede cerca de 4 milímetros, o
tamanho de um feijão.
6ª SEMANA
A aparência humana se define com o aparecimento dos
primeiros órgãos. Já é possível reconhecer onde estão coração, cérebro, braços
e pernas. O tamanho chega a 1 centímetro.
10ª SEMANA
O feto apresenta ondas cerebrais,
podendo responder a estímulos, e ganha unhas. O fígado começa a liberar a
bílis. Para muitos cientistas, neste estágio ele já é capaz de sentir dor.
17ª SEMANA
A mãe começa a sentir movimentos do feto, que já tem músculos e ossos.
Nas próximas 3 semanas ele passará de 8,5 para 15 centímetros de tamanho.
5 MESES
O pulmão está pronto – é a última estrutura vital a
se desenvolver. A partir daqui, o feto tem chances de sobreviver fora
do útero.
Fonte: José Roberto Goldim (Ufrgs)
5 respostas da ciência
1. Visão genética
A vida humana começa na fertilização, quando
espermatozóide e óvulo se encontram e combinam seus genes para formar um
indivíduo com um conjunto genético único. Assim é criado um novo indivíduo, um
ser humano com direitos iguais aos de qualquer outro. É também a opinião
oficial da igreja católica.
2. Visão embriológica
A vida começa na 3ª semana de gravidez, quando é estabelecida a
individualidade humana. Isso porque até 12 dias após a fecundação o embrião ainda é capaz de se dividir e
dar origem a duas ou mais pessoas. É essa ideia que justifica o uso da pílula
do dia seguinte e contraceptivos administrados nas duas primeiras semanas de gravidez.
3. Visão neurológica
O mesmo princípio da morte vale para a vida. Ou
seja, se a vida termina quando cessa a atividade elétrica no cérebro, ela
começa quando o feto apresenta atividade cerebral
igual à de uma pessoa. O problema é que essa data não é consensual . Alguns
cientistas dizem haver esses sinais cerebrais já na 8ª semana. Outros, na 20ª .
4. Visão ecológica
A capacidade de sobreviver fora do útero é que faz
do feto um ser independente e
determina o início da vida. Médicos consideram que um bebê prematuro só se
mantém vivo se tiver pulmões prontos, o que acontece entre a 20ª e a 24ª semana
de gravidez. Foi o critério adotado pela
Suprema Corte dos EUA na decisão que autorizou o direito do aborto.
5. Visão metabólica
Afirma que a discussão sobre o começo da vida
humana é irrelevante, uma vez que não existe um momento único no qual a vida
tem início. Para essa corrente, espermatozóides e óvulos são tão vivos quanto
qualquer pessoa. Além disso, o desenvolvimento de uma criança é um processo
contínuo e não deve ter um marco inaugural.
5 respostas da religião
1. Catolicismo
A vida começa na concepção, quando o óvulo é
fertilizado formando um ser humano pleno e não é um ser humano em potencial.
Por mais de uma vez, o papa Bento 16 reafirmou a posição da Igreja contra o aborto e a manipulação de embriões.
Segundo o papa, o ato de “negar o dom da vida, de suprimir ou manipular a vida
que nasce é contrário ao amor humano.”
2. Judaísmo
“A vida começa apenas no 40º dia, quando
acreditamos que o feto começa a adquirir forma
humana", diz o rabino Shamai, de São Paulo. “Antes disso, a interrupção da gravidez não é considerada homicídio.”
Dessa forma, o judaísmo permite a pesquisa com células-tronco e o aborto quando a gravidez envolve risco de vida para a
mãe ou resulta de estupro.
3. Islamismo
O início da vida acontece quando a alma é soprada
por Alá no feto, cerca de 120 dias após a fecundação. Mas há estudiosos que
acreditam que a vida tem início na concepção. Os muçulmanos condenam o aborto, mas muitos aceitam a prática
principalmente quando há risco para a vida da mãe. E tendem a apoiar o estudo
com células-tronco embrionárias.
4. Budismo
A vida é um processo contínuo e ininterrupto. Não
começa na união de óvulo e espermatozóide,
mas está presente em tudo o que existe – nossos pais e avós, as plantas, os
animais e até a água. No budismo, os seres humanos são apenas uma forma de vida
que depende de várias outras. Entre as correntes buditas, não há consenso sobre aborto e
pesquisas com embriões.
5. Hinduísmo
Alma e matéria se encontram na fecundação e é aí
que começa a vida. E como o embrião possui uma alma, deve ser tratado como
humano. Na questão do aborto, hindus escolhem a ação menos prejudicial a todos
os envolvidos: a mãe, o pai, o feto e a sociedade. Assim, em geral se opõem à
interrupção da gravidez, menos em casos que colocam em risco a vida da mãe.
5 respostas da lei
1. Brasil
Aqui, só há duas situações em que o aborto é permitido: em casos de
estupro ou quando a gravidez implica risco para a gestante.
Em quaisquer outros casos a interrupção da gravidez é considerada crime. Espera-se
ainda para este ano uma decisão final do Supremo Tribunal Federal que pode
liberar ou proibir em definitivo o aborto de fetos anencéfalos no país.
2. Eua
O aborto é permitido nos EUA desde
1973, quando a Suprema Corte reconheceu que o aborto é um direito garantido pela
Constituição americana. Pode-se interromper a gravidez até a 24ª semana de gestação –
na época em que a lei foi promulgada, era esse o estágio mínimo de
desenvolvimento que um feto precisava para sobreviver fora
do útero.
3. Japão
Foi um dos primeiros países a legalizar o aborto, em 1948. A prática se tornou
o método anticoncepcional favorito das japonesas – em 1955 foram realizados 1
170 000 abortos contra 1 731 000 nascimentos. Hoje, o aborto é legal em caso de estupro,
risco físico ou econômico à mulher, mas apenas até a 21ª semana – atual limite
mínimo para o feto sobreviver fora do útero.
4. França
Desde 1975 as francesas podem fazer abortos até a
12ª semana de gravidez. Após esse período, a
gestação só pode ser interrompida se dois médicos certificarem que a saúde da
mulher está em perigo ou que o tem tem problema grave de saúde .
Em 1988, a França foi o primeiro país a legalizar o uso da pílula do aborto RU-486, que pode ser utilizada
até a 7ª semana de gestação.
5. Chile
Proíbe o aborto em qualquer circunstância. A
prática é considerada ilegal mesmo nos casos que colocam em risco a vida da
mulher. Em casos de gravidez ectópica – quando o embrião se aloja fora do
útero, geralmente nas trompas – a lei exige que a gravidez se desenvolva até a
ruptura da trompa, colocando em risco a saúde da mulher.
Para saber mais
O Futuro da Natureza Humana - Jürgen Habermas,
Martins Fontes, 2004
Bioética - Marco Segre e Cláudio Cohen (org.),
Edusp, 2002
Vida Ética - Peter Singer, Ediouro, 2002
Biologia do Desenvolvimento - Scott F. Gilbert,
Sociedade Brasileira de Genética, 1994
REVISTA SUPERINTERESSANTE
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