sábado, 6 de outubro de 2012

Direito e Linguagem Adotada






"O LATIM E OUTRAS DIFICULDADES DA LINGUAGEM FORENSE

                   
Pedro Inácio da Silva


No mundo do direito, assim como em outros setores do conhecimento, desenvolve-se uma linguagem particular, específica, onde se guardam  palavras e expressões que ganham acepções próprias. Naturalmente  que,  à medida  que aumenta o nível de  especialização, mais complicado vai-se tornando o vocabulário técnico,  ampliando ainda mais o fosso que o separa da linguagem comum,  com a inevitável conseqüência de igualmente aumentar, para os que não são do meio, a dificuldade de compreender a matéria tratada no texto. Em matéria de recursos, por exemplo, o verbo “preparar” não significa “elaborar, redigir, aprontar”, como se poderia supor:   preparar um recurso tem outro sentido,  o de pagar as custas antecipadamente; no processo do trabalho, “reclamar” não significa “impugnar, queixar-se, manifestar descontentamento”, mas ingressar com uma ação. 

Além da perplexidade que comumente assalta o leigo pela natural variação de sentido que a palavra sofre ao ser tomada na linguagem particular,   outros elementos contribuem para tornar mais nebuloso o texto jurídico, particularmente se o profissional, envolvido pela correria da vida moderna, estressado com a competitividade que marca o individualismo pós-moderno, assoberbado com um volume excessivo de trabalho, não se dispõe ou não tem tempo para trabalhar o texto, observar com acuidade as regras da  gramática normativa. Com isso,  avolumam-se peças jurídicas onde se  percebe  o descuido no trato com a palavra, muitas se  apresentando prenhes de vícios como  ambigüidade, obscuridade, cacofonia, eco e colisão, que se opõem à clareza com que se deve expor os fatos e dizer o direito.

Clareza, concisão e precisão  são exigíveis  na linguagem   jurídica, notadamente na petição inicial,   onde o autor expõe o que pretende,  expressa o pedido, que, segundo o Código de Processo Civil, deve ser certo e determinado (art. 286) e que somente pode ser interpretado de modo restrito (art. 293); a sentença, “que traduz a vontade da lei aplicada ao caso concreto”, conforme anotou o Juiz Nylson Sepúlveda, citado por Dalzimar Tupinambá na obra Processo de conhecimento-anotações ( São Paulo:  LTr, 2001, p. 329), deve expressar claramente o que foi decidido, pois também  deve ser  interpretada restritivamente. Figuram, pois, como requisitos de inteligência dos textos jurídicos. Porém, tais requisitos  não são sinônimos de rigorismo formal, de tal modo que a linguagem forense seja enclausurada num hermetismo vocabular cujo acesso somente é permitido a iniciados.

Ainda que saibamos o quanto é difícil atingir o ideal de redigir peças judiciais em linguagem acessível às pessoas comuns, pois  o uso da técnica legitima o emprego de vocábulos e expressões cujo sentido escapa à maioria dos destinatários da jurisdição, que é o povo, essa deve ser uma meta sempre perseguida. Mas não há como negar a existência de  cultores da linguagem cifrada, dos  adeptos do preciosismo e que muitas vezes exibem um verniz erudito que não resiste a maiores aprofundamentos, seja  em conteúdo ou forma. A elegância no estilo,  profundidade científica,  esmero no trato com a linguagem, tão desejáveis,  não são sinônimos de pirotecnia vocabular, de exibicionismo que contribua   para o fortalecimento da péssima reputação do linguajar judiciário,  que o leigo costuma jocosamente reduzir aos “data venia” e “vossa excelência”.

Alguns  casos observados nos textos forenses decorrem de desatenção,  merecendo destaque os derivados de vícios de linguagem, que “são palavras ou construções, que deturpam, desvirtuam ou dificultam a manifestação do pensamento”, como ensina  Napoleão Mendes de Almeida na Gramática metódica da língua portuguesa ( 44. ed., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 506), e  que podem surpreender aos mais desavisados pela ocorrência. De se destacar os casos de  cacografia  — erro de grafia —  que até são motivos de blague   e revelam  falta  de  domínio da  língua:  escrever    frustar  em  lugar de frustrar,  meretíssimo  por meritíssimo,  omissídio  por homicídio, pode não ser perdoável. Outros incorrem no arcaísmo  — palavra ou expressão antiquada, fora de uso —,  que soam ininteligíveis ao ouvido comum, às vezes levando o discurso ao ridículo, como utilizar heréu em lugar de herdeiro, entença em lugar de pleito, demanda. O preciosismo trafega nessa mesma mão, pois  se  constitui no requinte exagerado  no  falar  e  no  escrever, empregando  palavras não usuais, extravagantes.  Caracteriza-se pelo desvio do padrão normal da linguagem, que foge à naturalidade do discurso, apresentando-se muito mais como um exibicionismo lingüístico, de difícil compreensão, quando não cai nos desvãos do pedantismo.  Uma das mais fortes razões que levam  pessoas que se dedicam a outras atividades a acusarem de pedantismo os profissionais do direito é o uso do estrangeirismo.  Pode ter fundamento a acusação quando o uso transforma-se em abuso. São admitidas palavras e expressões estrangeiras em qualquer texto  quando utilizadas com cautela, isto é, quando já são do domínio do público a quem se fala e aceitas sem grandes reservas, visto que a assimilação de culturas alienígenas  é inevitável. Todavia, nas peças processuais, destinadas  não somente aos especialistas, impõe-se que a escrita seja legível, de fácil compreensão, revelando-se aí o domínio da língua e o bom senso  do operador do direito.

 Porém, é o latim que mais tenta os profissionais do direito a exibir conhecimento e experimentar requintes estilísticos, com resultados às vezes grotescos. Como adverte  o  processualista José Carlos Barbosa Moreira, “o  uso do latim, entretanto, constitui terreno minado, onde com freqüência são vítimas de acidentes os que a ele se lançam sem equipamento necessário” (A linguagem forense,  in Temas de direito processual civil - sétima série, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 257). O que comumente ocorre é a repetição de expressões que se tornaram usuais  no meio forense, sem o real domínio do seu significado, particularmente em razão da supressão do ensino do latim nos cursos de direito, língua em que  foram escritas as linhas mestras do direito ocidental, e que até hoje reverbera na linguagem forense. Barbosa Moreira cita o exemplo da expressão data venia,  que é utilizada em sinal de respeito, como licença à pessoa de quem se quer  divergir, e  que freqüentemente ganha superlativos como datissima venia e  data veníssima (op. cit. p. 257), o que deve fazer estremecerem os cultores da língua de Cícero.  

O Código de Processo Civil de 1939 empregava muitas expressões latinas, como de cujus,  in limine, causa mortis, que foram  varridas pelo Código de 1973, moderno e de melhor técnica, e que dispõe no art. 156 que “em todos os atos e termos processuais é obrigatório o uso do vernáculo”.  Mas não há como negar a concisão do latim, idioma de extraordinário poder de síntese. Algumas expressões cunhadas há vários séculos ainda são retomadas, à falta de versão adequada no vernáculo.  Utilizando-as com parcimônia pode haver  enriquecimento do texto. É  do domínio público  a  expressão  “habeas   corpus”,  com   a    qual  se  denomina  o  instrumento processual garantidor da liberdade de locomoção contra ameaças ou lesões praticadas ilegalmente, e que nenhum jurista ousa substituir pelo correspondente em português: “tome o corpo”. Ronaldo Caldeira Xavier observa, com acerto, que “em linguagem forense há fórmulas consagradas pelo uso e pela praxe” (Português no direito, 15. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 231), razão pela qual não se pode condenar o uso de palavras e expressões latinas, desde que se conheça o seu significado e alcance, para que o texto não seja uma mera reprodução de equívocos.

Finalizando, deve ser notado que sobre os profissionais do direito recaem, induvidosamente, uma cobrança maior no uso da gramática, seja por ser instrumento de trabalho, seja pela tradição que a carreira jurídica tem entre nós, e também, em razão do desgaste por que passa a profissão nos dias atuais, como uma exigência de aperfeiçoamento para ingresso no mercado de trabalho. Aos advogados, promotores e juízes está a se exigir  a compreensão de que é necessário fugir das fórmulas que perpetuam erros, dos chamados manuais práticos, permeados de expressões muitas vezes desnecessárias e de   chavões equivocados, e a consciência de que a linguagem forense   não prescinde do estudo da gramática normativa, a par do estudo do direito, devendo  apresentar-se clara, simples, correta, liberta  de exibicionismos, tendo como alvo a comunicação técnica do que se pretende ou do que se decidiu."

Adorei esse texto e concordo com grande parte do que foi tratado aqui. Excelente" Experimentei um misto de alegria e alívio enquanto percorria os parágrafos. (Serena)

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