"O LATIM E OUTRAS DIFICULDADES DA LINGUAGEM
FORENSE
Pedro Inácio da Silva
No mundo do direito, assim como em outros
setores do conhecimento, desenvolve-se uma linguagem particular, específica,
onde se guardam palavras e expressões
que ganham acepções próprias. Naturalmente
que, à medida que aumenta o nível de especialização, mais complicado vai-se
tornando o vocabulário técnico,
ampliando ainda mais o fosso que o separa da linguagem comum, com a inevitável conseqüência de igualmente
aumentar, para os que não são do meio, a dificuldade de compreender a matéria
tratada no texto. Em matéria de recursos, por exemplo, o verbo “preparar” não
significa “elaborar, redigir, aprontar”, como se poderia supor: preparar um recurso tem outro sentido, o de pagar as custas antecipadamente; no
processo do trabalho, “reclamar” não significa “impugnar, queixar-se,
manifestar descontentamento”, mas ingressar com uma ação.
Além da perplexidade que comumente assalta o
leigo pela natural variação de sentido que a palavra sofre ao ser tomada na
linguagem particular, outros elementos
contribuem para tornar mais nebuloso o texto jurídico, particularmente se o
profissional, envolvido pela correria da vida moderna, estressado com a
competitividade que marca o individualismo pós-moderno, assoberbado com um
volume excessivo de trabalho, não se dispõe ou não tem tempo para trabalhar o
texto, observar com acuidade as regras da
gramática normativa. Com isso,
avolumam-se peças jurídicas onde se
percebe o descuido no trato com a
palavra, muitas se apresentando prenhes
de vícios como ambigüidade, obscuridade,
cacofonia, eco e colisão, que se opõem à clareza com que se deve expor os fatos
e dizer o direito.
Clareza, concisão e precisão são exigíveis na linguagem
jurídica, notadamente na petição inicial, onde o autor expõe o que pretende, expressa o pedido, que, segundo o Código de
Processo Civil, deve ser certo e determinado (art. 286) e que somente pode ser
interpretado de modo restrito (art. 293); a sentença, “que traduz a vontade da
lei aplicada ao caso concreto”, conforme anotou o Juiz Nylson Sepúlveda, citado
por Dalzimar Tupinambá na obra Processo de conhecimento-anotações ( São
Paulo: LTr, 2001, p. 329), deve
expressar claramente o que foi decidido, pois também deve ser
interpretada restritivamente. Figuram, pois, como requisitos de
inteligência dos textos jurídicos. Porém, tais requisitos não são sinônimos de rigorismo formal, de tal
modo que a linguagem forense seja enclausurada num hermetismo vocabular cujo
acesso somente é permitido a iniciados.
Ainda que saibamos o quanto é difícil atingir
o ideal de redigir peças judiciais em linguagem acessível às pessoas comuns,
pois o uso da técnica legitima o emprego
de vocábulos e expressões cujo sentido escapa à maioria dos destinatários da
jurisdição, que é o povo, essa deve ser uma meta sempre perseguida. Mas não há
como negar a existência de cultores da
linguagem cifrada, dos adeptos do
preciosismo e que muitas vezes exibem um verniz erudito que não resiste a
maiores aprofundamentos, seja em
conteúdo ou forma. A elegância no estilo,
profundidade científica, esmero
no trato com a linguagem, tão desejáveis,
não são sinônimos de pirotecnia vocabular, de exibicionismo que
contribua para o fortalecimento da
péssima reputação do linguajar judiciário,
que o leigo costuma jocosamente reduzir aos “data venia” e “vossa
excelência”.
Alguns
casos observados nos textos forenses decorrem de desatenção, merecendo destaque os derivados de vícios de
linguagem, que “são palavras ou construções, que deturpam, desvirtuam ou
dificultam a manifestação do pensamento”, como ensina Napoleão Mendes de Almeida na Gramática
metódica da língua portuguesa ( 44. ed., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 506),
e que podem surpreender aos mais
desavisados pela ocorrência. De se destacar os casos de cacografia
— erro de grafia — que até são
motivos de blague e revelam falta
de domínio da língua:
escrever frustar em
lugar de frustrar, meretíssimo por meritíssimo, omissídio
por homicídio, pode não ser perdoável. Outros incorrem no arcaísmo — palavra ou expressão antiquada, fora de uso
—, que soam ininteligíveis ao ouvido
comum, às vezes levando o discurso ao ridículo, como utilizar heréu em lugar de
herdeiro, entença em lugar de pleito, demanda. O preciosismo trafega nessa
mesma mão, pois se constitui no requinte exagerado no
falar e no
escrever, empregando palavras não
usuais, extravagantes. Caracteriza-se
pelo desvio do padrão normal da linguagem, que foge à naturalidade do discurso,
apresentando-se muito mais como um exibicionismo lingüístico, de difícil
compreensão, quando não cai nos desvãos do pedantismo. Uma das mais fortes razões que levam pessoas que se dedicam a outras atividades a
acusarem de pedantismo os profissionais do direito é o uso do
estrangeirismo. Pode ter fundamento a
acusação quando o uso transforma-se em abuso. São admitidas palavras e expressões
estrangeiras em qualquer texto quando
utilizadas com cautela, isto é, quando já são do domínio do público a quem se
fala e aceitas sem grandes reservas, visto que a assimilação de culturas
alienígenas é inevitável. Todavia, nas
peças processuais, destinadas não
somente aos especialistas, impõe-se que a escrita seja legível, de fácil
compreensão, revelando-se aí o domínio da língua e o bom senso do operador do direito.
Porém,
é o latim que mais tenta os profissionais do direito a exibir conhecimento e
experimentar requintes estilísticos, com resultados às vezes grotescos. Como
adverte o processualista José Carlos Barbosa Moreira,
“o uso do latim, entretanto, constitui
terreno minado, onde com freqüência são vítimas de acidentes os que a ele se
lançam sem equipamento necessário” (A linguagem forense, in Temas de direito processual civil - sétima
série, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 257). O que comumente ocorre é a repetição
de expressões que se tornaram usuais no
meio forense, sem o real domínio do seu significado, particularmente em razão
da supressão do ensino do latim nos cursos de direito, língua em que foram escritas as linhas mestras do direito
ocidental, e que até hoje reverbera na linguagem forense. Barbosa Moreira cita
o exemplo da expressão data venia, que é
utilizada em sinal de respeito, como licença à pessoa de quem se quer divergir, e
que freqüentemente ganha superlativos como datissima venia e data veníssima (op. cit. p. 257), o que deve
fazer estremecerem os cultores da língua de Cícero.
O Código de Processo Civil de 1939 empregava
muitas expressões latinas, como de cujus,
in limine, causa mortis, que foram
varridas pelo Código de 1973, moderno e de melhor técnica, e que dispõe
no art. 156 que “em todos os atos e termos processuais é obrigatório o uso do
vernáculo”. Mas não há como negar a
concisão do latim, idioma de extraordinário poder de síntese. Algumas
expressões cunhadas há vários séculos ainda são retomadas, à falta de versão
adequada no vernáculo. Utilizando-as com
parcimônia pode haver enriquecimento do
texto. É do domínio público a expressão “habeas
corpus”, com a
qual se denomina
o instrumento processual
garantidor da liberdade de locomoção contra ameaças ou lesões praticadas
ilegalmente, e que nenhum jurista ousa substituir pelo correspondente em
português: “tome o corpo”. Ronaldo Caldeira Xavier observa, com acerto, que “em
linguagem forense há fórmulas consagradas pelo uso e pela praxe” (Português no
direito, 15. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 231), razão pela qual não
se pode condenar o uso de palavras e expressões latinas, desde que se conheça o
seu significado e alcance, para que o texto não seja uma mera reprodução de
equívocos.
Finalizando, deve ser notado que sobre os
profissionais do direito recaem, induvidosamente, uma cobrança maior no uso da
gramática, seja por ser instrumento de trabalho, seja pela tradição que a
carreira jurídica tem entre nós, e também, em razão do desgaste por que passa a
profissão nos dias atuais, como uma exigência de aperfeiçoamento para ingresso
no mercado de trabalho. Aos advogados, promotores e juízes está a se
exigir a compreensão de que é necessário
fugir das fórmulas que perpetuam erros, dos chamados manuais práticos,
permeados de expressões muitas vezes desnecessárias e de chavões equivocados, e a consciência de que
a linguagem forense não prescinde do
estudo da gramática normativa, a par do estudo do direito, devendo apresentar-se clara, simples, correta,
liberta de exibicionismos, tendo como
alvo a comunicação técnica do que se pretende ou do que se decidiu."
Adorei esse texto e concordo com grande parte do que foi tratado aqui. Excelente" Experimentei um misto de alegria e alívio enquanto percorria os parágrafos. (Serena)