terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Autismo e Inocência - Psiquiatra e Pediatra Fátima Dourado


Autismo e Inocência

A minha profissão de médica me possibilita conhecer muita gente, saber dos seus segredos, seus jeitos de ser, suas dores e grandezas. Gosto de ouvir meus pacientes e de observar deslumbrada a combinação única que cada um vai fazendo entre o que tem de herança e experiência e no resultado único, complexo, maravilhoso em cada pessoa se transforma.
Nos últimos vinte anos tenho me dedicado com especial atenção a estudar, atender e entender pessoas que possuem uma condição bastante singular, o autismo. O autismo tem muitas causas e múltiplas formas de se apresentar mas uma característica sempre me surpreende e encanta em todos os indivíduos com autismo: a Inocência. Asperger, o médico austríaco que descobriu uma forma de autismo que hoje leva o seu nome, descrevia a inteligência autista como a inteligência pura, intocada pela cultura.
Os autistas possuem todos dificuldades para se comunicar e interagir socialmente e costumam ter hábitos e interesses repetitivos. A parte isso, podem passar a vida inteira sem dizer uma única palavra ou serem oradores e escritores prolíficos.
Podem ter habilidades savants e grande expertise em áreas muito especializadas do conhecimento ou deficiência intelectual. Não existem dois autistas iguais. Mas todos costumam ser socialmente inocentes. Não costumam mentir, não trapaceiam, não puxam tapetes de ninguém.
Pisam constantemente nas etiquetas, não entendem as sutilezas do jogo social, não querem derrubar ninguém. Podem até mesmo causar constrangimentos, com suas verdades contundentes.
Ainda existem muitas dúvidas que cercam o autismo, mas o seu estudo tem acumulado muitas certezas: ele não é resultado de maus pais, nem de mães frias. Tampouco resulta de traumas. Pessoas com autismo, hoje sabemos, possuem um desenvolvimento cerebral diferente, principalmente nos complexos circuitos cerebrais que hoje denominamos de cérebro social.
Bebês com grande probabilidade de desenvolver autismo costumam não olhar muitos nos olhos da pessoas, nem mesmo nos da mãe, enquanto mamam. Não prestam atenção nos aspectos sociais do seu entorno. Demoram a desenvolver a atenção compartilhada e não desenvolvem completamente a teoria da mente.
A Teoria da Mente é a capacidade que temos de atribuir pensamentos, crenças e intenções aos outros e de percebe-los diferentes dos nossos, o que nos habilita para interações sociais complexas. Pessoas com autismo e síndrome de Asperger, têm muita dificuldade para fazer amigos, para realizar conquistas amorosas, por não conseguirem se aperceber das intenções alheias . Conheço muitas pessoas com Asperger que ficam muito tristes, deprimidas mesmo por não conseguirem agradar, dizer o que deles se espera ouvir.
Uma condição humana como o autismo não pode nunca, nem de longe, ser comparada com uma outra que embora também afete o que denominamos de Cérebro Social, o faz por caminhos completamente diferentes: a Psicopatia.
Psicopatas costumam ser experts em Teoria da Mente, sabem com precisão o que acontece na cabeça dos outros. São capazes de mentir, de manipular, de agradar, de enganar, de roubar e não raro de matar, sem com isso, sentir nenhuma culpa.
Se aos autistas falta Teoria da mente aos psicopatas falta compaixão e empatia. Se uma condição é marcada pela inocência social e emocional a outra o é pela conhecimento exato de como o outro, sempre uma vítima em potencial, funciona.
É impossível para quem trabalha com saúde mental confundir uma coisa com outra. Trabalho diariamente com mais de quatrocentas pessoas com autismo. Há vinte anos dirijo a organização que atende ao maior número de autistas no país e nunca presenciei, em todos estes anos, um único crime planejado e cometido por uma pessoa com autismo. Já presenciei, ao contrário disso, muitos autistas serem vítimas indefesas de maus tratos.
Nos últimos anos, no Brasil e no exterior muitos têm se dedicado à luta para retirar as pessoas com autismo do limbo social em que se encontram. Diagnóstico e intervenção precoces, inclusão na escola, no trabalho e na vida comunitária, apoio às famílias, muito tem que ser feito para ajudar estas pessoas a terem uma vida de qualidade e para que sejam respeitadas como sujeitos de direitos.
No momento em que crianças com autismo começam a frequentar os mesmos bancos escolares que as outras crianças da sua idade, em que jovens com autismo começam a participar do mundo do trabalho, gerar medo e desconfiança destas pessoas é mais que desserviço é uma aberração e um crime.
Fátima Dourado Mãe do Giordano e do Pablo (dois rapazes com autismo) Pediatra e Psiquiatra Fundadora e Diretora Clínica da Casa da Esperança Diretora Técnica da ABRAÇA.

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